Atenciosamente Michelle
Subitamente, não sabia mais como se ata o nó da gravata. Era como se enfrentasse uma tarefa desconhecida, com que nunca tinha tido qualquer familiaridade. Recomeçou do princípio. Uma vez outra vez _ nada. Suspirou com desanimo e olhou atento aquele pedaço de pano dependurado no seu pescoço. Vagarosamente, tentou dar a primeira volta _ e de novo parou o gesto sem sequência. Viram-se no espelho, rugas e suor na testa: a mão esquerda era a direita, a mão direita era a esquerda.
Seus olhos, cheios de lágrimas, encaravam sua imagem no espelho, cabelos ruivos, barba mal feita, terno amassado por estar tanto tempo escondido no armário. “As coisas dela ainda tem o mesmo cheiro” ele pensa e as lembranças o sufocam, cada cor, cada fala, cada cheiro, o calor que vinha do sorriso dela, seus cabelos castanhos que debaixo do sol se tornavam dourados, suas unhas que nunca cresciam tanto quando ela desejava...
Marcos se sentou no chão segurando seus joelhos em uma tentativa falha de fazer a dor parar, “um último abraço” – ele pensa – “não tive a chance de abraçá-la uma última vez” . Estava quase na hora, e ele despertou de seus devaneios quando seu relógio apitou, desistindo da gravata ele pega as chaves de casa e do carro e não se atreve a olhar as fotos de Michelle no corredor.
As pessoas, de preto, se amontoavam na igreja, numa quinta aparentemente normal, choravam, se abraçavam e cochichavam o motivo da sua morte. Ali todos sabiam e não poupavam os comentários agressivos. “ Porque será que ela se matou ?” uma mulher perguntava a outra, na porta da igreja “ Aposto que não aguentava mais ele” responde com uma certa ignorância a pergunta da amiga “ Quem Marcos ? Não é possível ela amava ele” “ Eu soube que ele traiu a Michelle quando ela viajou por umas semana para o México” . Elas continuaram conversando, parando por um minuto para prestar suas condolências a Marcos .
Amigos, colegas, alguns primos. Sua família sempre fora ele. “Ela finalmente vai poder perguntar a mãe porque dera como presente de casamento aquele vaso de flores feio e irregular” – o pensamento o faz se sentir melhor, mas ele logo caiu na realidade do porque todos estavam aqui. As pessoas não a conheciam, não tão bem quanto Marcos, Michelle sempre viajava, esse era o seu trabalho, ver o mundo e escrever sobre ele, perder noites no computador, perder dias no avião.
Marcos não via porque, tantas pessoas tentavam o consolar, ninguém conseguiria, os únicos que entendiam isso eram seus amigos que permaneciam em silencio ao seu lado. Era hora do discurso, ele não tinha ensaiado, não tinha nem mesmo escrito um, mas as palavras vinham naturalmente, assim como suas lagrimas. Ele a amava tanto, mais do que parecia ser possível, mais do que qualquer outra pessoa. Eles eram um só.
O tempo passava, sem momentos marcantes, ele se recusava a sentir, se forçava a continuar e esquecer. Mas uma pergunta se pendurava em sua mente, corroendo sua racionalidade, tornando a dor mais insuportável do que já era. O dia começava e terminava, um, dois, três logo uma semana havia passado, as coisas tinham sido empacotadas ate mesmo as de Michelle. Tudo estava pronto, ele pretendia não voltar.
Em um canto do armário, bem escondido, uma caixa preta chamou a atenção de Marcos que ate então havia a ignorado. Se sentando no chão ele estica sua mão e tira a tampa, um caderno, quase uma agenda, na capa o nome Michelle, trouxe memórias esmagadoras, era o diário dela. Ele não tinha forças para le-lo e o teria jogado no lixo se não tivesse visto um marcador no dia em que Michelle se matou. As seguintes palavras ficaram presas em sua mente :
Eu já marquei a consulta, não consigo mais esperar, eu não tenho a menor dúvida sobre o resultado, até Marcos notou algumas diferenças em mim. Mas o que realmente me deixa preocupada é a reação dele.
Logo abaixo havia o número de um consultório, e o nome de um médico. Fernando. “Não era um nome conhecida, muito menos alguém da família, era somente um médico, que talvez tivesse a resposta, que talvez soubesse porque ela simplesmente desistiu” Marcos pensava.
Fora uma longa noite, seus pensamentos não paravam em outro lugar senão aquele diário que pendia aberto na mesma página no mesmo canto do quarto. O número era mas para uma metáfora sobre sua escolha do que apenas um número e a responsabilidade de talvez ser o culpado pela morte de Michelle era demasiadamente doloroso. Mas não havia outra escolha, “desistir? Simplesmente me conformar de que ela morreu e que o motivo não importa ? Como posso fazer isso ?” Indagava Marcos.
Nas primeiras horas da manha, depois de conflitos, medos, choros, e um sentimento de agonia ele decide, contra o seu bom senso e sua sanidade, ligar para o médico e marcar um consulta. Marcos não falou sobre a esposa, nem perguntou sobre os pacientes recentes, não era necessário. O Sol brilhava e o céu azul coberto por poucas nuvens fazia com que o trajeto se tornasse bonito e devia ser sobre isso que pessoas normais estariam conversando, mas Marcos não via o céu, nem o mar, as nuvens ou o Sol, as pessoas na calçada não chamavam sua atenção e as aves cantando não eram ouvidas.
O lugar era assustadoramente branco, ate mesmo para um consultório e o cheiro era de luvas de borracha novas, não havia muitas pessoas e ele logo entrou na sala, se sentou na cadeira e por alguns minutos só esperou sua voz aparecer.
Ele mostrou uma foto de Michelle, falou sobre ela pela primeira vez depois da última quinta feira e segurando as lágrimas perguntou por que ela viera e mesmo já sabendo a resposta não pode deixar de se arrepiar quando a ouviu.
-Me lembro dessa moça, ela sorria muito e sua reação ao sair daqui foi um tanto diferente das demais, não poderia esquecer dela. Escute Marcos, você é o marido dela certo ? Ela precisa do seu apoio agora a gravidez psicológica pode levar a uma depressão severa ainda mais ela não podendo ter filhos no futuro.
-Como doutor? Pode repetir?- Marcos não consegue segurar essas palavras e por mais que tentasse se conformar com o que o médico dizia era impossível acreditar e mais difícil ainda pensar que ela nunca o dissera sobre suas suspeitas da gravidez.
Marcos não falou sobre Michelle ter morrido e saiu pouco depois do médico entregar um folheto sobre depressão. Ao chegar em casa não pode mais se agüentar em pé e desmoronou no chão molhando suas roupas de lágrimas, como era difícil não te-la ali para abraça-lar, nem pedir conselhos. Uns turbilhão de lembranças cruzavam sua mente cada momento em que a teve em seus braços, agora parecia uma faca cruzando seu peito, na verdade ele desejava que fossem pois não suportaria aquilo por muito mais tempo.
Uma lembrança em particular o lembrou da primeira vez que Michelle viajou a negócios, ela o entregou um livro e antes de se despedir disse que aquele livro não era só para ser lido, mas sim guardado para que toda vez que ele o tirasse da estante se lembrasse dela. Revirando todas as caixas ate encontrá-lo marcos é tomado por mais lágrimas e mais lágrimas ao encarar a capa “ Uma crença silenciosa em Anjos” e ao abri-lo em uma página aleatória.
Uma carta em um envelope azul cai no chão chamando a atenção dele, que antes mesmo de respirar a abre pensando em quando ela a colocou ali. Era uma carta de despedida, ele foi tomado pelo fato de que ela não voltaria, essa era a prova definitiva, mais do que isso era uma constatação de que nunca a veria de novo.
Ao ler a assinatura de sua esposa, Marcos sem mais lágrimas e sem mais forças se deita no chão e passa a noite encarando aquelas duas palavras que sempre foram um consolo nas cartas que ela mandava quando estava em viagens.
Atenciosamente Michelle
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